O fundamento escriturístico da visão de que alguns pecados são
piores do que outros
Ainda assim, continuo sendo um ‘homem da Bíblia’; então, atentemos
para ela. Provas para a visão de que a Bíblia considera
alguns pecados como piores do que outros são praticamente
infindáveis, de modo que encerrarei a lista quando chegar numa dúzia de
exemplos.
(1) No Antigo Testamento, existe claramente uma classificação de
pecados. Por exemplo, em Levítico 20, que reordena as ofensas sexuais do
capítulo 18 conforme a severidade da ofensa/pena, com as
ofensas sexuais mais graves agrupadas primeiro (20.10-16). Dentro do primeiro
nível de ofensas sexuais (ao lado de adultério, as piores formas de incesto, e
bestialidade) está a relação sexual com alguém do mesmo sexo. Obviamente,
variadas penas para diferentes pecados se encontram por todo o material legal
do Antigo Testamento.
(2) Após o episódio do bezerro de ouro,
Moisés disse aos israelitas: ‘Cometestes um grande pecado.
Agora, porém, subirei ao Senhor; talvez eu possa fazer expiação pelo vosso
pecado’ (Êx 32.30). Obviamente, o episódio do bezerro de ouro foi um enorme
pecado por parte dos israelitas, algo confirmado pela gravidade do julgamento
divino. Deve ter havido muitos tipos de pecados entre os israelitas, desde o
momento em que partiram do Egito. Apenas em ocasiões específicas, no entanto, a
ira de Deus se acendeu contra as ações dos israelitas — por que motivo, se
todos pecados são igualmente abomináveis para Deus?
(3) Números 15.30 refere-se
às ofensas praticadas com ‘punhos cerrados’ (deliberadamente
e, talvez, em tom de desafio) como se fossem de natureza mais séria do que
pecados relativamente involuntários (15.22,24,27,29).
(4) Em Ezequiel 8, o profeta é erguido
por um anjo ‘nas visões de Deus’ e levado até Jerusalém, onde vê diferentes
graus de idolatria ocorrendo nos arredores do Templo e o anjo declarando duas
vezes a frase: ‘Verás abominações ainda maiores que estas’ (isto
é, coisas detestáveis para Deus; 8.6,13,15; 8.17), depois de uma sequência de
visões.
(5) Jesus referiu-se ao ‘que há de mais importante
na Lei’ (Mt 23.23), como justiça, misericórdia e
fidelidade — era mais importante obedecer a estas coisas do que ao dízimo de
especiarias, mesmo que não se devesse desprezar tais ofertas. Formulações deste
tipo implicam que violações do que há de mais importante ou dos principais
mandamentos (como não defraudar os pobres de seus recursos tendo em vista ganho
pessoal) são mais graves do que violações de mandamentos menores ou ‘mais
leves’ (por exemplo, dar o dízimo de pequenos alimentos, como especiarias),
que, segundo Jesus, deveriam ser praticados sem deixar de lado as questões mais
importantes. Jesus acrescenta a seguinte crítica: ‘Guias
cegos! Coais um mosquito e engolis um camelo’ (23.24).
Qual é a diferença entre um mosquito e um camelo, se todos os mandamentos e
todas as violações são iguais?
(6) Famosa também é a identificação que Jesus fez
dos dois mandamentos mais importantes (Mc 12.28-31). Ele
também disse: ‘Quem desobedecer a um desses mandamentos [da
lei], por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será
chamado o menor no reino do céu’ (Mt 5.19). Novamente, apresentar mandamentos
maiores e menores significa apresentar violações maiores e menores.
(7) Sugeriria que a especial aproximação de Jesus a quem explorava
os outros economicamente (cobradores de impostos) e a quem pecava na área
sexual, sempre no esforço de restaurá-los para o reino de
Deus que ele proclamava, não era tanto uma reação ao abandono deles pela
sociedade quanto uma indicação da especial gravidade desses pecados e o perigo
espiritual extremo que tais pessoas encaravam. Nesse sentido, pode-se pensar
na história da mulher pecadora que lavou os pés de
Jesus com lágrimas, enxugou-os com seus cabelos, beijou-os com seus lábios, e
ungiu-os com óleo (Lc 7.36-50). Jesus explicou o ato extraordinário da mulher
contando uma parábola de dois devedores: aquele a quem o credor
mais perdoa é quem mais o ama. A dedução óbvia é que a mulher
pecadora tinha feito algo pior aos olhos de Deus. Embora o anfitrião fariseu de
Jesus não tenha gostado que a mulher tenha tido contato com Jesus, este louvou
as ações dela: ‘Os pecados dela, que são muitos [ou grandes], lhe são
perdoados, pois ela amou muito [ou grandemente]; mas aquele a quem se perdoa pouco,
este ama pouco’ (7.47). Muitos cristãos tratam a ideia de ser perdoado de
maiores pecados como algo ruim. Jesus subverteu-a. Pense só como cristãos que
enfatizam que todos pecados são iguais poderiam empregar o conceito bíblico de
alguns pecados serem mais graves do que outros: alguns de nós talvez
precisassem de mais perdão, mas posso dizer que isto nos fez entender a graça
do Senhor de uma forma melhor e, portanto, amar o Senhor ainda mais.
(8) Outro caso óbvio de priorização de algumas ofensas como piores
do que outras é a caracterização de Jesus sobre a ‘blasfêmia
contra o Espírito Santo’, ‘pecado eterno’ do qual nunca se terá
perdão — no contexto, refere-se aos fariseus terem atribuído os exorcismos de
Jesus ao poder demoníaco (Mc 3.28-30).
(9) De acordo com João 19.11, Jesus disse a
Pilatos: ‘Nenhuma autoridade terias sobre mim, se do alto não te fosse dada;
por isso, aquele que me entregou a ti incorre em pecado
maior’. A referência é a Judas (6.71; 13.2,26-30; 18.2-5) ou ao
sumo sacerdote Caifás (18.24,28). ‘Pecado maior’ naturalmente implica que a
ação de Pilatos é pecado menor.
(10) Paulo fala sobre diferentes níveis de ação em
1Coríntios 3.10-17: é possível construir de qualquer jeito
sobre o fundamento de Cristo e sofrer perda, mas ainda assim herdar o reino. No
entanto, ‘destruir o templo de Deus’, a comunidade local de cristãos, por
questões indiferentes traria sobre a pessoa sua própria destruição efetuada por
Deus. Contrasta-se esta destruição com ser ‘salvo … pelo fogo’ por causa das ofensas
menores. Importantes comentaristas de 1Coríntios (por exemplo, Gordon Fee
[pentecostal], Richard Hays [metodista], David Garland [batista] e Joseph
Fitzmyer [católico]) concordam (1) que se faz distinção entre o grau de
gravidade das ações; e (2) que Paulo aborda a salvação individual do cristão.
Assim diz Gordon Fee: ‘Que Paulo atenta para uma verdadeira ameaça de punição
eterna parece também ser o sentido óbvio do texto’. ‘Quem é responsável por
desmantelar a igreja pode esperar julgamento à altura; é difícil fugir do
sentido de juízo eterno neste caso, dada a sua proximidade com os vv. 13-15’
(The First Epistle to the Corinthians [NICNT; Grand Rapids: Eerdmans, 1987],
pp. 148-149). O mesmo pensa Garland, que de forma sucinta afirma que ‘juízo
desolador’ aguarda a quem destrói a comunidade em Corinto: ‘sua salvação está
em risco’ (p. 121).
(11) Se todo pecado é igualmente grave para Deus, por
que Paulo destacou a ofensa do homem incestuoso em 1Coríntios dentre todos os
pecados dos coríntios como motivo para exclusão da comunidade? Por
que tamanha expressão de choque e indignação da parte de Paulo? Além disso, se
não existisse uma classificação de mandamentos, como Paulo poderia ter
rejeitado de imediato um caso de incesto que mostrava consenso entre dois
adultos, era monógamo e comprometido? Se os valores da monogamia e compromisso
pelo resto da vida fossem de mesmo peso que a exigência de certo nível de
alteridade familiar, Paulo poderia não ter tomado uma decisão quanto ao que
fazer. Naturalmente, para Paulo, não foi uma questão difícil de decidir. Ele
sabia que a proibição de incesto era mais fundamental.
(12) Primeira João 5.16-17 diferencia entre
‘pecado que não é para morte’ (pelo qual a oração pode surtir efeito e salvar a
vida do pecador) e ‘pecado para a morte’ (pecado
mortal, pelo qual a oração não surtirá efeito).
Estes doze
exemplos (será que precisamos mesmo de mais?) já devem deixar claro que a
afirmação de que a Bíblia não indica em lugar algum que determinados pecados
são piores aos olhos de Deus não tem nenhum mérito.
Cristãos às
vezes ficam confusos sobre a questão ao pensar no argumento de Paulo acerca do
pecado universal em Romanos 1.18—3.20. Sim, Paulo argumenta que todos seres
humanos, judeus e gentios sem nenhuma distinção, estão ‘debaixo do pecado’ e
‘sujeito[s] ao julgamento de Deus’. De fato, sua posição não é simplesmente que
‘todos pecaram e estão destituídos [ou carecem] da glória de Deus’ (3.23), mas
também que todos ‘substituíram a verdade de Deus’ e de nós mesmos acessível nas
estruturas materiais da criação (1.18-32) ou na revelação direta das Escrituras
(2.1—3.20). Paulo argumenta o seguinte: não podemos dizer que pecamos, mas não
sabíamos que pecamos. Pecamos e sabíamos (em algum lugar nos recônditos da
nossa alma) ou, ao menos, recebemos muitas provas disso. Em resumo, todos são
‘indesculpáveis’ por não glorificar Deus como Deus (1.20-21).
O que Paulo diz é que qualquer pecado pode excluir alguém do reino
de Deus, se esse alguém pensa que pode conquistar a salvação por mérito pessoal
ou que dispensa a morte reparadora e a ressurreição vivificadora de Jesus. O
que Paulo não diz é que todo pecado é igualmente ofensivo a Deus em todos
aspectos. O argumento em Romanos 2, por exemplo, não é que os judeus pecam
tanto (quantitativamente) ou tão notoriamente quanto (qualitativamente) os
gentios de maneira geral. Qualquer judeu, incluindo Paulo, teria rejeitado esta
conclusão de imediato. Idolatria (1.19-23) e imoralidade sexual /
homossexualidade (1.24-27) não era nem de longe um problema tão grande entre os
judeus como o era entre os gentios (evidentemente, ‘os pecados comuns’ de
1.29-31 já eram mais problemáticos). Antes, o argumento é que, embora os judeus
pequem menos e de forma menos notória em relação aos gentios de maneira geral,
todavia têm mais conhecimento porque têm mais acesso às ‘palavras de Deus’ nas
Escrituras (2.17-24; 3.1,4,9-20). Então, tudo fica nivelado, por assim dizer,
no que diz respeito à necessidade de receber a obra graciosa de Deus em Cristo
(3.21-31).
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